Uma das orações mais profundas e, ao mesmo tempo, mais estimadas de nosso povo é “O Anjo do Senhor”. Nem todos sabem reza-la, embora todos os católicos devessem fazê-lo, porque adentra o âmago da nossa fé, o mistério da Encarnação, recordando sua grandiosidade. O toque do Angelus - às 6 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde - é conservado em nossas Igrejas para nos lembrar de elevarmos o coração a Deus durante a faina diária. Em Roma é costume, desde séculos, o Papa aparecer, aos Domingos, na segunda janela do seu apartamento para a récita do Angelus, acompanhada de uma mensagem e da saudação ao povo que, por vezes, lota a Praça de São Pedro.
Vamos meditar sobre as invocações do Angelus, todas extraídas dos Evangelhos, justamente com o objetivo de aprofundar-lhe o significado, para nos estimular a manter esta preciosa tradição da Igreja.
“O Anjo do Senhor anunciou a Maria” (cf.Lc 1,26-27). Esta frase resume a passagem do Evangelho de São Lucas, na qual o Anjo Gabriel apresenta-se a Maria e anuncia que ela será a Mãe do Salvador. É um anúncio muito solene: “Alegra-te, Maria, porque achaste graça diante do Senhor” (Lc 1,28), significando que Cristo a co-envolve na plenitude do seu Mistério, projetando sobre ela toda a força da Redenção. Ela, por sua vez, aceita essa difícil missão, mesmo sem entendê-la cabalmente e sem saber o seu alcance. “E ela concebeu do Espírito Santo” (cf. Lc 1,35). O Pai e o Filho enviaram sobre Maria o seu Amor recíproco, o próprio Espírito Santo. Como conseqüência, ela concebeu em seu seio a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo, para vir a ser gente como nós, exceto no pecado. Aparece, assim, a grandiosidade daquele acontecimento, pela condescendência de Deus querer vir morar conosco, tornando-se um dos nossos. Assim, hoje e para sempre, no seio da Trindade, Jesus Cristo tem unida a si a nossa natureza humana, já glorificada. “Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38). Esta segunda invocação repete a resposta de Maria. “Servo” é um termo que, na Sagrada Escritura, adquire um valor todo especial, particularmente em Isaías (cf. Is 53). Porque o Servo por excelência, anunciado pelos profetas, foi Aquele que nos ensinou a entrega total, aniquilando-se pelo próprio despojamento, mesmo sendo Deus (cf. Fl 2,6). E Jesus diz a respeito de si mesmo: “O Filho do Homem veio não para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28), deixando-nos o exemplo: “Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo” (Mt 20,26).
Ao colocar-se como serva diante de Deus, Maria antecipou a atitude de seu Filho, apoiando-se na profecia de Isaías. Logo a seguir, ela complementa: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Este “faça-se” é a disponibilidade total à vontade divina - Fiat - tão acentuado por muitos escritores de espiritualidade. Expressa, claramente, o reconhecimento de que nada é melhor do que a vontade de Deus, e o desejo de que ela se cumpra, ainda que não sejam conhecidas todas as suas consequências. A Palavra de Deus é sempre eficaz e, por isso, quando Maria concorda com o seu cumprimento, ela tem absoluta certeza de que vai se realizar o efeito da Palavra.
“E o Verbo se fez carne”... (Jo 1,14). Aqui está o centro do mistério da
Encarnação. Não há mistério mais sublime: Deus se torna gente como nós, passa pelas nossas emoções, pelas nossas fragilidades, e o que é maior e mais trágico, assume toda a nossa história, a triste história dos pecados, carregando sobre si as nossas culpas (cf. Is 53,4-5). Tudo, tudo pesou sobre Ele, que jamais depôs essa “carga” da humanidade, mas, pelo contrário, nos regenerou pelo seu Mistério Pascal.
A terceira e última invocação se completa: ...”E habitou entre nós” (Jo 1,14). A palavra “habitou” não traduz exatamente o que João refere. O Verbo, isto é, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, “fixou a sua tenda” estavelmente no meio de nós, como se Ele a tivesse construído, estabelecendo-a para sempre. De fato, depois que Jesus veio à terra, Ele nunca mais a deixou, ainda que a sua Ascensão gloriosa o tenha afastado visivelmente dos nossos olhos. Mas, Ele continua presente na Eucaristia, ou onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome (cf. Mt 18,20), ou, ainda, com os missionários que vão aos confins da terra, anunciando a Boa-Nova: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). Depois destas três invocações, vem a oração de conclusão: “Infundi, Senhor, em nossas almas a vossa graça”... Primeiramente, para aceitar o mistério da Redenção, é preciso a graça, a própria força de Deus que nos é dada para realizar o que nós, normalmente, não conseguiríamos. Nenhuma obra meritória seria possível sem o auxílio da graça de Deus, que nos eleva acima de nossas fragilidades e nos transforma, tornando-nos aptos a fazer a vontade divina, em dimensão sobrenatural.
...”Para que, conhecendo pela anunciação do Anjo o mistério da Encarnação”... É importante conhecer os eventos relacionados à vinda de Deus entre nós: a escolha de Maria, as glórias com as quais Deus a adornou em vista dessa missão, o chamado de José para ser o Pai adotivo do Menino que iria nascer, e todas as dificuldades que tiveram de ser superadas para que o plano de Deus se realizasse, na “plenitude dos tempos”. Entretanto, mais do que conhecer, é preciso vivenciar a ansiosa expectativa, o generoso acolhimento e a jubilosa gratidão daqueles aos quais Deus se confiou como criança indefesa.
...”Cheguemos, por sua Paixão e Cruz, à glória da Ressurreição”. No Mistério Pascal, defrontamo-nos com o ponto convergente dos merecimentos de Cristo: o seu sofrimento, o derramamento de sangue, a coroação de espinhos, a flagelação, o caminho do Calvário, a crucifixão e a morte. Passando por esse mistério da Paixão, Cristo ressuscita glorioso, na manhã da Páscoa, e sobe aos céus. Dessa glória nós quase nada conhecemos. Mesmo àqueles dotados de graças místicas, Ele nunca aparece como está, realmente, nos céus, porque olhos humanos não seriam capazes de suportar essa visão. Somente após a morte, como a nossa fé nos garante, receberemos a “luz da glória”, dom que nos permitirá vê-lO tal como Ele é. Finalmente, na consumação dos tempos, nossos corpos também ressuscitarão, pois a Ressurreição de Cristo é penhor e garantia da nossa.
Quanta beleza e profundidade contidas numa oração tão pequena e facílima de ser rezada diariamente! A todos aconselho recita-la com muita piedade, fé e devoção, santificando as etapas do dia: pela manhã, recordando a atitude de Maria, consagramos a Deus nossas atividades; ao meio-dia, unimo-nos ao Verbo Encarnado em sua Paixão; à tarde, recordamos a morte que cai sobre a humanidade como a noite, na certeza de que Cristo triunfou, pela Ressurreição, e nos torna também vitoriosos, na expectativa da união definitiva com Ele.
CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID